11/10/2017 14h45

Por iniciativa da vereadora Iara Bernardi (PT), a audiência contou com a participação de especialistas em educação, que apresentaram suas críticas ao projeto

 

“Escola Sem Partido: Censura Ideológica no Ambiente Escolar” foi o tema da audiência pública realizada na noite de terça-feira, 10, no plenário da Câmara Municipal de Sorocaba. A iniciativa foi da vereadora Iara Bernardi (PT) e, além da vereadora, a mesa dos trabalhos contou com a participação das seguintes autoridades: diretor da Unesp em Sorocaba e presidente do Conselho Municipal de Educação, Alexandre da Silva Simões; representando a OAB-Sorocaba, advogada Maria Claudia Tognocchi Finessi; coordenador do Conselho Regional de Psicologia em Sorocaba, Tom Rodrigues; o professor da UFSCar, Marcos Francisco Martins, doutor em Filosofia e História da Educação; a presidente da Apeoesp, Isabel Noronha; e os vereadores Francisco França (PT), Fernanda Garcia (PSOL) e Luis Santos (Pros).

 

“No nosso entendimento, esse projeto, que tramita nesta Casa e em outras Casas Legislativas do país, instaura a censura ideológica no ambiente escolar e não foi debatido com os professores e estudantes”, afirmou Iara Bernardi (PT) na abertura dos trabalhos, acrescentando que o projeto foi considerado inconstitucional por várias instituições, inclusive pela OAB. Durante a audiência, a vereadora lembrou que o Senado está discutindo novamente a redução da maioridade penal e a alteração na Lei do Desarmamento, "dois temas que interessam a toda a população" e que devem ser discutidos em sala de aula, o que tem desagrado o Escola Sem Partido.

 

"Um pai de aluno estava se queixando que um professor estava debatendo esses temas em sala de aula com a camisa do Che Guevara, como se a escola não pudesse ser um espaço para discutir a redução da maioridade penal e o desmonte do Estatuto do Desarmamento. Conheço duas professoras que já foram filmadas por orientação do MBL, essa organização fascista, falando de temas que fazem parte da disciplina de História que elas lecionam e podem, inclusive, cair no Enem. Mesmo assim, os pais foram orientados pelo MBL para filmar denunciar esses professoras. É isso que nos leva a fazer essa audiência pública, que está sendo bem mais democrática do que a de ontem [promovida pelo vereador Luis Santos), onde houve discurso de ódio contra o Escola Sem Partido", afirmou Iara Bernardi.

 

Por sua vez, lembrando que é professora e “está vereadora”, Fernanda Garcia (PSOL) disse sentir “uma profunda tristeza e indignação ao ver um projeto como o Escola Sem Partido entrar em tramitação na Câmara Municipal de Sorocaba”, uma vez que, no seu entender, o Programa “Escola Sem Partido”, caso seja aprovado, iria proibir, na prática, a discussão dos problemas da educação, como a falta de estrutura das escolas, que poderia ser interpretação como uma discussão ideológica de esquerda.

 

“Proposta de retrocesso” – O diretor da Unesp em Sorocaba e presidente do Conselho Municipal de Educação, Alexandre da Silva Simões, posicionou-se “fortemente contrário” ao projeto de lei. “Todos nós estamos cansados das mazelas políticas e, quando temos um projeto chamado ‘Escola Sem Partido’, ele captura grande parte do cansaço da população, mas o conteúdo dele é bastante diferente do que o seu nome sugere e pode levar à censura do professor”, afirmou, citando exemplos em que o professor deverá contrariar fatos científicos consolidados apenas para não ferir crenças e até superstições dos pais.

 

“Paulo Freire dizia que, ao ensinar, tanto o professor aprende quanto o aluno e que o ensino eficaz permite que ambos se embebedem do conhecimento, caso contrário, será uma doutrinação e uma doutrinação a favor da situação política vigente, como que o Escola Sem Partido, uma imposição daqueles que detêm o poder, concordando com a censura que, em outra ocasião, já vimos acontecer”, afirmou Alexandre Simões. Segundo ele, o Escola Sem Partido significa um retrocesso, pois interfere no trabalho docente e restringe a autonomia didática do professor, que é garantida pela legislação vigente.

 

“O Movimento Escola Sem Partido parte de setores conservadores na política, que pregam a intransigência à liberdade de expressão, não somente no ensino, como também nas artes e nas questões de raça e gênero, desencadeando uma intolerância e uma invasão preconceituosa nas várias manifestações da sociedade atual”, enfatizou Alexandre Simões. Para o presidente do Conselho Municipal de Educação, se a educação, segundo a própria etimologia da palavra, é “transformação”, o Escola Sem Partido, ao impedir a transformação do professor e do aluno por meio do processo educativo, impossibilita a própria existência da escola enquanto tal, ou seja, seria “uma escola muito engraçada, não tinha aluno, não tinha nada”, ironizou, parafraseando o poema de Vinicius de Moraes, “A Casa”.

 

“Contradições e inverdades” – O professor e coordenador do Conselho Regional de Psicologia (CFP) em Sorocaba, Tom Rodrigues, representando o Núcleo de Sexualidade e Gênero do Conselho, afirmou que a proposta de Escola Sem Partido está eivada de “contradições e inverdades” e citou como exemplo uma ação do movimento contra o Enem (Exame Nacional do Ensino Médio) pelo fato de o Enem conferir zero a redações que atentam contra os direitos humanos. “Ou seja, o que eles estão dizendo é que, se a família é racista, machista ou homofóbica, ela deverá ser respeitada assim mesmo. Ora, não é para a cidadania que as escolas existem e educam?”, indagou, acrescentando que defender uma escola plural, sem partidarismo político, é plausível, mas não é aceitável defender uma escola que proíbe determinados temas e que censura a professora dentro da sala de aula.

 

Tom Rodrigues observou, ainda, que, de acordo com o que se depreende do projeto de lei do Escola Sem Partido, “a moral da família é soberana, superior à própria Constituição”. No entanto, enfatizou, citando exemplos: “A família, de acordo pesquisas e dados estatísticos, é o principal local de violência: violência sexual, violência doméstica, violência contra as crianças”. Para ele, debater essas questões ou a ditadura militar nas escolas poderá ser proibido com o Escola Sem Partido e o professor terá que responder judicialmente por isso. “Isso não é uma questão de preferência moral, não é cabível escolher entre querer ou não querer um país baseado na violência, na censura, na exclusão. Ensinar sobre as diferenças é uma questão de cidadania”, enfatizou, destacando que o projeto, “que se diz neutro, foi apresentado por um vereador que é pastor e é apoiado por um movimento que se chama Direita Sorocaba”.

 

“Proposta Inconstitucional” – A advogada Maria Claudia Tognocchi Finessi, representando o presidente da OAB-Sorocaba, Márcio Dias, afirmou que, conforme nota técnica da entidade a partir de estudo de suas diversas comissões, o projeto de lei que institui o Programa Escola Sem Partido é inconstitucional. “Cabe à OAB defender a Constituição e o projeto fere material e formalmente a Constituição”, afirmou a advogada. Aproveitando a fala da representante da OAB, a vereadora Iara Bernardi acrescentou que também o Conselho Regional de Psicologia e a Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão do Ministério Público Federal também apresentaram parecer contrário ao projeto, além de manifestações contrárias do ministro Luiz Roberto Barroso, do Supremo.

 

O professor da UFSCar, Marcos Francisco Martins, doutor em Filosofia e História da Educação, iniciou sua fala com uma ironia: “Eu me inspirei em dois autores: Lenin e Fidel. Pode falar isso ainda?” – indagou, arrancando risos da plateia. “Preparei um discurso de quatro horas e meia, por isso inspirado em Lenin e Fidel, mas aqui vamos ter que falar em quinze minutos”, afirmou, acrescentando que iria discutir não só o projeto, mas também o Movimento Escola Sem Partido, que é mais amplo que o projeto. “Além de inconstitucional, como fartamente demonstrado do ponto de vista legal, o projeto, do ponto de vista conceitual, é impraticável, dado ao fato de que defende a neutralidade político-ideológica no processo educativo. E é também indesejável para aqueles que querem ‘construir uma sociedade livre, justa e solidária’, conforme preconiza o artigo 3º, inciso I, da Constituição de 88”, disse, citando textualmente a Carta Magna.

 

Marcos Martins afirmou também que “o Movimento Escola Sem Partido é maior do que o projeto e se inspira num movimento norte-americano e também das universidades inglesas, chamado ‘Sem Doutrinação’, que consiste, sobretudo, em acabar com espaços do pensamento democrático em todos os ambientes sociais, sobretudo nas universidades e escolas”. E acrescentou, enfático: “Trata-se de um movimento da direita internacional que tem um pé na nossa nação”. Segundo ele, o movimento se alicerça em dois pilares: defender a “não doutrinação” e defender que a educação moral e religiosa das crianças ocorra dentro das famílias. O professor também contestou os dados do movimento, alegando que ele apresenta 80 vídeos mostrando suposta doutrinação num universo de 45 milhões de estudantes, o que não tem valor científico e estatístico.

 

“Doutrinação de direita” – O professor Marcos Martins disse ainda: “Ao argumento da doutrinação, eu respondo com dados. Se há doutrinação, ela não é de esquerda, mas de direita. Pesquisa do Datafolha mostrou que 45% dos brasileiros se identificam com pautas de direita contra apenas 35% que se identificam com pautas de esquerda” – contabilizou. “Quanto a colocar nas famílias à responsabilidade pela educação moral e religiosa das crianças, eles se esqueceram que o direito de aprendizagem, a educação, é um direito social, previsto na Constituição, tanto que a matrícula do aluno na escola é obrigatória. A criança tem o direito de ter uma educação que ela não tem em casa, isto é, o conhecimento acumulado e sistematizado historicamente pela humanidade no âmbito da ciência, da filosofia, da arte e da tecnologia. Pai nenhum, pastor nenhum, vereador nenhum, tem o direito de tirar esse direito da criança” – enfatizou.

 

Marcos Martins discorreu também sobre o que considera o núcleo central do projeto do Escola Sem Partido, que, no seu entender, é a defesa da tese da neutralidade, como uma conduta obrigatória para o professor – algo “impraticável”, segundo ele. “Ser neutro é ter a possibilidade de fazer alguma coisa sem deixar que seus valores, crenças, idiossincrasias, desejos e orientações interfiram no que você está fazendo. Alguém consegue fazer isso? Pois o projeto preconiza a neutralidade política, ideológica e religiosa. Isso é irrealizável. Esta Câmara ou o Congresso podem aprovar essa norma, mas ela é irrealizável, porque o ser humano é, por excelência, um ser subjetivo. Em tudo o que ele faz, ele põe as suas crenças, seus desejos, suas vontades, por isso, o projeto é irrealizável”, afirmou o professor, acrescentando que, no caso de uma imposição partidária por parte do professor, já existem instâncias que coíbem essa prática, como os conselhos escolares.

 

Posição da Apeoesp – A presidente da Apeoesp (Sindicato dos Professores do Ensino Oficial do Estado de São Paulo), professora Isabel Noronha, também se posicionou contra o projeto de lei, lembrando que a entidade que representa tem enfrentando, de modo sistemático, o Escola Sem Partido, que, no seu entender, “é uma farsa”, uma vez que “neutralidade é, em si, uma posição política”. Para a presidente da Apeoesp, o Escola Sem Partido advoga que o aluno é um “inocente, que vai ser abusado pelos professores, quando, na verdade, o aluno é um ser pensante, que pode se contrapor a uma posição do professor”.

Isabel Noronha foi taxativa: “Quero ver alguém, do Escola Sem Partido, quando eu estiver na sala de aula, dizer que não posso tratar de sexo, gênero, com meus alunos. A sala de aula é a relação direta minha com meus alunos e, naquele espaço, nós somos os agentes” – afirmou, acrescentando que o projeto é um retrocesso, que tenta impor uma ideologia de direita. “O projeto atenta contra a liberdade de cátedra e se houver delação premiada para delatar professor, não vou estranhar” – indignou-se a professora e líder da categoria, citando ainda o sobrevivente do Holocausto, Elie Wiesel (1928-2016), para quem “a neutralidade favorece o opressor, nunca a vítima, e o silêncio encoraja o assediador, nunca o assediado”.

 

Questões da plateia – O professor Alexandre Tarteli, da Intersindical, disse que o projeto não traz avanço nenhum para a escola pública e lamentou que, no mês de outubro, às vésperas do Dia do Professor, em vez de se discutir a valorização dos docentes, tem-se que discutir o referido projeto. Francisco Valério, presidente do Conselho Municipal de Saúde, disse que pais que praticam violência contra os filhos têm que estar na cadeia. O professor Odirlei Botelho, do Fórum Regional de Educação Infantil, disse que, hoje, já não se respeitam os valores morais de todas as famílias, mas apenas das famílias consideradas padrão, e também se posicionou contra o projeto. A estudante Sabah Farah, da União Sorocabana dos Estudantes Secundaristas, citando Paulo Freire, disse que o professor deve apresentar suas leituras de mundo, o que, segundo ela, mostra as contradições do projeto ao querer pregar a neutralidade e defendeu a mobilização contra o Escola Sem Partido.

 

O professor João Negrão observou que, a depender do Escola Sem Partido, os professores de biologia acabarão sendo expulsos das escolas por ensinar evolucionismo. O professor Marcos Soares, da UFSCar, disse que “a sala de aula é o último bastião de resistência do professor” e que isso já é motivo suficiente para ser contra o Escola Sem Partido. Um estudante do Núcleo de Comando Estudantil afirmou que, se o partido é essencial para a democracia, tirar a noção de partido da escola é enfraquecer a própria democracia. O professor Rafael Vicentini, de sociologia, disse que não é possível separar política da educação, uma vez que a política permeia todas as relações sociais. A professora Vera Capucho disse que está havendo um fortalecimento das ações fascistas e autoritárias e afirmou que o projeto vai eliminar vários conteúdos das salas de aulas.

 

Vários outros estudantes e professores também se manifestaram contra o Escola Sem Partido, como a estudante Renata Marques, do Conselho Municipal do Jovem, que disse acreditar que os autores do Escola Sem Partido nunca pisaram numa escola pública, pois, segundo ela, a doutrinação está longe de ser o maior problema da escola. “Vivemos numa sociedade em que, a cada dez professores, seis já foram agredidos em sala de aula”, exemplificou, citando outros números da violência, como as mortes de crianças e adolescentes. A professora Carol Correia, da Apeoesp, disse que o Escola Sem Partido é também um partido. Também se manifestaram contra o projeto: Gabriela Guedes, do Levante Popular da Juventude; Fábio Santos de Moraes, da Apeoesp; Pedro Bueno, pelo Centro Acadêmico da Uniso; o professor Marinho, do Núcleo de Educação e Direitos Humanos, que inseriu o Escola Sem Partido no contexto do “obscurantismo beligerante” praticado por Donald Trump; Gregório, da Apeosp, e João Pedro.

 

Autor do projeto – O vereador Luis Santos (Pros), autor do projeto, esteve presente na audiência pública logo no início dos trabalhos e fez uso da palavra. Ele afirmou ter pontos convergentes com os críticos do projeto, no que tange ao reconhecimento de que a escola pública vive uma situação precária, sem investimentos, e necessita também de uma participação maior dos pais. “No entanto, e espero que ninguém aqui faça parte desse grupo, há aqueles que muitas vezes se utilizam da audiência cativa na sala de aula para transmitir conhecimentos alheios ao que é necessário para a formação do aluno. A sociedade está preocupada com uma onda de liberalismo que já chega à libertinagem em relação às nossas crianças”, afirmou, citando o caso de uma escola de Minas Gerais em que se fez um laboratório com alunos de 10 anos do ensino fundamental, no qual uma escritora apresentou um poema pornográfico, com muitos palavrões, que as próprias crianças se recusarem a ler. O vereador, a despeito do convite da vereadora Iara Bernardi, não permaneceu na audiência, alegando compromissos pessoais, e, no decorrer dos debates, foi criticado pela ausência por alguns professores e estudantes.

 

A mesa estendida do evento contou com a presença das seguintes pessoas: Tania Bacelli, professora e ex-vereadora; Gabriel Bittencourt, consultor ambiental e ex-vereador; Renata Márcia, do Conselho Municipal do Jovem; José Rodrigues Machado, diretor do Instituto Tecnológico Quadrangular, representando o deputado Jefferson Campos (PSD); presidente da Comissão da Mulher, advogada Tatiana Batista de Oliveira; presidente da Comissão da Diversidade Sexual e de Gênero, Luciana Kubo; Leonardo Kurtz Von Ende Bianco, vice-presidente da Comissão de Diversidade Sexual; do Observatório Social do Brasil em Sorocaba, Sueli Bonora dos Santos; do Fórum Paulista de Educação Infantil da UFSCar, Maria Valborra dos Santos; professora do Instituto Paula Souza, Camila Mantovani Dias; da Juventude do PSDB, Guilherme Moreno; Fórum Regional de Educação Infantil, Odirlei Botelho; Associação Transgênero de Sorocaba, Laura Morales; da CUT, Laudi Moraes.